terça-feira, 8 de maio de 2018

Ernesto Nazareth, spin músico

Última foto de Ernesto Nazareth, extraída de seu prontuário médico (fotógrafo não identificado).
Coleção Maestro Mozart de Araújo – Centro Cultural Banco do Brasil.


Em 19 de janeiro de 1933, o compositor recebeu alta do Hospício Nacional de Alienados; no entanto, o agravamento de sua perturbação mental motivou nova internação, em 4 de março de 1933, desta feita na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá. 


No dia 1º de fevereiro de 1934, data natalícia de seu filho Ernestinho, Ernesto Nazareth fugiu da Colônia Juliano Moreira, falecendo, possivelmente, nesse mesmo dia; três dias depois, seu corpo foi encontrado, em adiantado estado de putrefação, dentro de uma represa, distante cerca de 1 km da sede da instituição. O laudo do Instituto Médico Legal confirmou a hipótese de afogamento – asfixia por submersão – mas, até hoje, não se sabe se decorrente de suicídio ou acidente. De acordo com Luiz Antônio de Almeida, o corpo de Nazareth chegou às dependências da Colônia Juliano Moreira sobre uma padiola iluminada por tochas; Ernestinho (filho), Eulina (filha) e Maria Mercêdes (professora gaúcha, amiga de Eulina), que aguardavam na administração, ficaram chocados ao depararem com o corpo do compositor que, com os braços rigidamente projetados para cima, passava a todos a impressão de estar vivo sob o lençol. A propósito, em mensagem que me enviou em 2008, o biógrafo de Nazareth reproduz importante depoimento da pianista carioca Maria Alice Saraiva (1913-2001)³ a respeito das condições em que foi encontrado o cadáver do compositor:

“O mais impressionante, na descoberta do corpo de Nazareth, foi a posição em que ele foi encontrado. Foi a Dona Mercêdes, depois confirmado a mim pela própria Dona Eulina, quem me disse que encontraram o corpo dele na posição vertical, como se estivesse de pé, dentro d’água, com as mãos para frente, como se estivesse tocando piano!...”

O aspecto do corpo de Nazareth, ao ser retirado da represa, não causaria estranheza àqueles acostumados a lidar com o cenário da morte. Isso porque, no período gasoso da putrefação, o cadáver costuma assumir aspecto gigantesco, decorrente, sobretudo, do inchaço da face, da genitália e do abdome; e, com os braços estendidos, projetados para cima ou para frente, dependendo de como o corpo é encontrado, assume a chamada “posição de lutador”, expressão habitualmente utilizada em Tanatologia Forense. No caso específico de Nazareth – e tomando por base o depoimento de Maria Alice Saraiva –, seria lícito referir-se, em vez de “posição de lutador”, a “posição de pianista”, como se, num gesto derradeiro, o genial compositor estivesse executando ao piano algumas de suas primorosas peças – como Floraux, BambinoQuebradinhaCoração que sente ou Confidências –, seu passaporte definitivo para a imortalidade.


Ainda sobre a morte de Nazareth, vale assinalar que, na página 142 do livro Pixinguinha. Vida e Obra. (Rio de Janeiro: Lumiar Editora, 1997), de autoria do jornalista Sérgio Cabral, lê-se: 

“Dias depois, era nomeado fiscal do Serviço de Limpeza Urbana, cargo em que permaneceria pouco tempo, pois o que Pedro Ernesto queria mesmo é que Pixinguinha organizasse a banda da Guarda Municipal. Como a função de maestro de banda não existia nos quadros administrativos da prefeitura, a solução foi admiti-lo na Limpeza Urbana, onde realmente atuou como fiscal enquanto a banda não se formava. Trabalhou inclusive no dia 4 de fevereiro de 1934, véspera do carnaval, quando levou um susto do qual nunca se esqueceu, como confessou ao contrabaixista, cantor e principal solista do conjunto vocal Os Cariocas, Luís Roberto. Naquele dia, ele fazia uma inspeção num local próximo do Instituto Médico Legal, quando um amigo e funcionário do IML lhe perguntou se desejava ver um corpo em processo de autópsia e que parecia ser de um músico, talvez amigo de Pixinguinha. Ele foi até lá e viu que o corpo, encontrado num pequeno riacho próximo à Colônia de Psicopatas Juliano Moreira (de onde fugira no dia anterior), em Jacarepaguá, era de ninguém menos do que do pianista e compositor Ernesto Nazareth. O funcionário do IML e seus colegas, provavelmente, não faziam a menor ideia de que cuidavam do corpo de um dos maiores nomes de todos os tempos da música brasileira.” 

Em que pese a afirmativa equivocada de que Nazareth fugira da Colônia Juliano Moreira “no dia anterior”, ou seja, no dia 3 de fevereiro – e não no dia 1º, como de fato aconteceu –, a passagem supracitada reveste-se de forte simbolismo, como se o encontro acidental de dois dos maiores ícones do choro – um deles com apenas 36 anos, em pleno vigor físico e mental, e o outro recém-falecido, estendido numa mesa de autópsia – necessário se fizesse para que Pixinguinha recebesse, ao modo do atleta olímpico que recebe o bastão na corrida de revezamento, uma espécie de convocação íntima para persistir cultivando, com seu invulgar talento, esse brasileiríssimo gênero musical que tanto nos seduz.

fonte: http://www.clubedochorodebh.com.br/
Por Luiz Otávio Savassi Rocha

http://pcbotelho.blogspot.com/2015/09/doenca-e-morte-de-ernesto-nazareth.html



A arte brasileira esquecida, muitos morreram sob total abandono, como Ernesto Nazareth, um dos muitos internos da Colônia Juliano Moreira






Pedro de Alcântara era flautista, compositor e também tocava flautim.

Era filho de Pedro de Alcântara e Francisca Rosa das Chagas. Nasceu em 21 de agosto de 1866, no Rio de Janeiro. Aos 15 anos, iniciou os estudos em flauta.
Sua primeira apresentação foi na festa da igreja Nossa Senhora da Glória do Outeiro, fazendo um solo em sua flauta de prata, para o Imperador D. Pedro II, que estava presente.
No início de sua carreira artística apresentou-se nos cinemas OdeonAmericano e Atlântico.

Em sua casa, promovia encontros onde recebia amigos compositores e amantes do choro, como Quincas Laranjeiras, Ernesto Nazareth, Villa-Lobos, Catulo da Paixão Cearense...
Compôs, em 1907, a polca Dores do Coração, mas, mudou seu nome para Choro e Poesia, que se tornaria sua composição mais conhecida, sendo gravada em 1911. Anos depois, Catullo da Paixão Cearense colocaria letra na melodia e a composição passou a se chamar Ontem ao Luar, gravada em 1917 por Vicente Celestino, sendo muito famosa até hoje.

Em 1912, Pedro de Alcântara realizou quatro gravações junto do pianista Ernesto Nazareth, onde interpretou Choro e Poesia, de sua autoria; Linguagem do Coração, de Joaquim Callado; Favorito e Odeon, ambas de Ernesto Nazareth.


Choro e Poesia

Polca de Pedro de Alcântara

Gravada por Pedro de Alcântara no flautim e Ernesto Nazareth ao piano
Disco Odeon Record 108.788, matriz XR-1461
Gravação de 1912


Do dicionario mpb


Iniciou sua atividade artística apresentando-se nos Cinemas Odeon,  Americano (situado à Avenida Nossa Senhora de Copacabana) e no Atlântico.  Promovia  encontros em sua casa onde recebia companheiros de choro como Quincas Laranjeiras, Ernesto Nazareth, Villa-Lobos, Catulo da Paixão Cearense, entre outros. Em 1907, compõe a polca  "Choro e poesia", inicialmente chamada "Dores do coração", sua composição mais conhecida,  gravada em  disco da Casa Edison, em 1911.  

Posteriormente,   ao receber  letra de Catulo da Paixão Cearense, "Choro e poesia" tornou-se a célebre canção "Ontem ao luar".  

Em 1912 realizou uma série de quatro gravações com o pianista Ernesto Nazareth interpretando as polcas "Choro e poesia", de sua autoria e "Linguagem do coração", de Joaquim Calado e os tangos "Favorito" e "Odeon", de Ernesto Nazaré. Em 1918, Vicente Celestino gravou "Ontem ao luar" na Odeon. Seu último recital aconteceu na cidade de Sete Lagoas em Minas Gerais, no Cine Trianon, em 1929. 


Na ocasião,  foi  acompanhado por seu filho Sérgio Pedro de Alcântara, ao violino e  por Geralda da Mata, ao piano. Faleceu poucos dias depois nesta mesma cidade.  

Nos anos 1970, a composição "Choro e poesia" (Ontem ao luar) voltou às paradas de sucesso recebendo cerca de 10 novas gravações, pois muitos na época, a acharam parecida com a música "Love story", do filme do mesmo nome, sucesso de bilheteria. 

Muitas das gravações feitas omitiam sua participação na autoria da música, que era dada apenas a Catulo da Paixão Cearense. 

Um  neta do compositor obteve na justiça em 1976, que lhe fosse restabelecida a autoria da polca. 

Em 2000, a gravação de "Ontem ao luar" feita por Vicente Celestino foi relançada pela EMI na série "Cantores do rádio", volume 1. 

Em 2013, sua interpretação, na flauta, do tango "Odeon", de Ernesto Nazareth, com o próprio Ernesto Nazareth ao piano, realizada em 1912, foi incluída no CD "Ernesto Nazareth 150 anos - Vol. 1" lançado pelo selo Revivendo em homenagem ao sesquicentenário do compositor Ernesto Nazareth.


NAZARETH POR ELE MESMO

Alexandre Dias 18.06.2014

“Biografias são apenas as roupas e botões do homem. A biografia do próprio homem não pode ser escrita”.
Mark Twain
Passaporte de Ernesto Nazareth. 1932. Coleção Luiz Antonio de Almeida.

Se pudéssemos conversar com Nazareth em pessoa, o que aprenderíamos? Como ele seria? Existem registros que remontem diretamente a suas falas ou temos que recorrer apenas a fontes secundárias?
Na história da música (e demais histórias) existe um fenômeno importante, que os pesquisadores conhecem bem: quanto mais antigo um músico, menor a probabilidade de se encontrar documentos diretamente ligados a ele, ou que registrem suas próprias ideias (como entrevistas, cartas, autobiografia, e, em tempos mais modernos, gravações e filmagens).
Compositores brasileiros nascidos em meados do século XIX, como Chiquinha Gonzaga, Joaquim Callado, Anacleto de Medeiros e Alexandre Levy apresentam este problema. Nazareth, nascido em 1863, também se enquadra neste status, porém em menor grau, pois algumas entrevistas suas foram publicadas em jornais da época. São pequenas, mas são dos registros mais preciosos para entendermos o compositor, pois constituem fontes primárias.
As transcrições a seguir são oriundas da pesquisa biográfica de Luiz Antonio de Almeida sobre Ernesto Nazareth, recém-publicada no site EN150. Todas as falas diretas de Nazareth estão destacadas em negrito. Ao final de cada entrevista apresento um breve resumo das informações mais relevantes.
Em 1963, o jornalista Brício de Abreu relembrou um encontro que teve com Ernesto Nazareth:
Conheci-o em 1924. O nosso grupo de boêmios e jornalistas, semanalmente, reunia-se em casa do Dr. Bandeira de Gouvêia, na Rua Buarque de Macedo. Eram reuniões de poesia, canto e ternura. Nascimento Filho (barítono), Lulu Vidal (o Barão), Thedim Lôbo, Gomes Leite (poeta que morreu moço por atropelamento), Carlos Frederico da Silva, Agenor Chaves, às vezes Moacyr de Almeida (meu companheiro em “A Tribuna”), Afonso Lopes de Almeida, Álvaro Guanabara, Cláudio Manuel e tantos outros. Uma noite, Mme. Bandeira de Gouvêia apresentou-nos Ernesto Nazareth. Cabelos grisalhos, já penteados da direita para a esquerda, tal como vemos na foto de 1926, gordo, de estatura mediana. Foi uma noite memorável, em que Nazareth tocou várias de suas músicas, só parando para ceder lugar a um brasileiro magro, esquálido, de nome alemão, que morava lá em Santa Teresa, e que era louco por música popular. Foi a única vez que tive contacto com o mestre que falava calmo e simples, e que era de uma modéstia que impressionava. Lembro-me de que Agenor Chaves, num grupo que formamos em redor do mestre, perguntou-lhe como iniciara a sua vida de compositor. Nazareth sorriu e timidamente contestou:
“ - Detesto falar de mim. Mas, se quer saber alguma coisa a meu respeito e o que penso, aqui tem uma entrevista que me arrancaram, à força, na semana passada, para a ‘Folha da Noite’, de São Paulo.”
E, tirando do bolso uma folha de jornal, dobrada, deu-a a Agenor Chaves. Nos meus apontamentos consta: “...como estamos a 28 de setembro de 1924, o artigo deve ter sido publicado na segunda semana deste mês. Vêr em São Paulo”. Nunca pude fazê-lo, mas quando for à capital paulista, procurarei e ainda hei de ver o que diz essa entrevista. Em todo caso, aqui fica a indicação aos rebuscadores.
A impressão que nos ficou daquela noite foi imensa e ainda dura até hoje. Nazareth não se parecia com nenhum outro pianista quando tocava. E, creio que freqüentávamos todos os que eram conhecidos e populares, naquela época.
Brício de Abreu O CRUZEIRO. Rio de Janeiro, 1963

A matéria em questão foi publicada na Folha da Noite, de São Paulo, em 8 de setembro de 1924 (acesse a imagem original aqui).

FLOR AMOROSA DE TRÊS RAÇAS TRISTES
O QUE DIZEM A “FOLHA” OS TRÊS MAIS POPULARES
COMPOSITORES BRASILEIROS
O PERFIL DE NAZARETH

Numa tarde de Agosto último, o acaso reuniu, num canto da rua do Ouvidor, os tres mais populares dos nossos compositores: Souto, Nazareth e Tupynambá. Foi no estabelecimento musical de propriedade do primeiro, apesar de também se negociar alli artigos photographicos. A hora baça do crepusculo inutilizou a lembrança de se bater uma chapa, flagranteando o encontro. Em todo caso, restava o recurso do lapis de Paim, que soube tão bem penetrar o perfil de Nazareth, emquanto este analisava a opulencia dos seus rythmos, do seu dedilhado, nesse modelo de dansa caracteristica que é o “Apanhei-te, cavaquinho!”
Fixadas as physionomias, tentou-nos apanhar as ideas dos tres.
Nazareth é surdo. O barbarizo atordoante de fora, da rua, sonorizada pelas ondas dos passantes e pelo som moido dos realejos dos mendigos, rolava até á pequena sala onde conversavamos, difficultando-lhe a participação na palestra. Tambem a timidez não lhe solta a lingua. É regra geral que os surdos fallam baixo, como para demonstrar a terceiros, por uma especie de pudor ironicamente explicavel, que ouvem distinctamente o que os menos discretos lhes berram aos ouvidos. Nelle, porém, não é só isso o que o obriga a fallar num quasi murmurio: é a modestia, a modestia legitima, laivada de uma desconfiança infantil pelo que possa valer.
- Um critico francez [Darius Milhaud] chamou-o genial. O senhor leu essa referencia ao seu nome? - indagámos em voz alta, encostando a bocca ás suas faces sanguineas, roçando-lhe as mechas de cabellos brancos. Elle fez um gracioso amuo:
- Ah! Já sei... Não sei por que... Eu não mereço nada disso.
- Quando nasceu? - prosseguimos.
- A 20 de Março de 1863.
- Tem então...
- Sessenta annos.
- Pois não parece. Está ainda bem forte.
É de facto. Sua radiosa apparencia de saude engana o calculo que se lhe faça da idade. Depois, quem o vê tocar e attenta na prodigiosa articulação que elle desenvolve ao executar os seus maxixes, determinadamente inçados de effeitos difficilimos de conseguir, e a que a agilidade electrica de suas mãos accrescenta imprevistos floreios, tão ao sabor dos “choros” cariocas, para logo se convencer de que um sangue jovem ainda os anima.
Ao louvor que lhe fizemos ao virtuosismo, elle torna a contrapôr um agradecimento acanhado:
- É herança de minha mãi. Minha mãi chegou a causar admiração aos professores de sua época, sem nunca ter tido mestres. Digo herança, porque eu tambem me fiz autodidacta, é certo que por força das circumstancias. Lições, só recebi oito na vida as de um professor francez que, durante a minha mocidade, viveu aqui no Rio de Janeiro. Tambem, depois disso, nunca mais tive quem me ensinasse a tocar, e muito menos a compor. O que me valeu e continúa a valer de muito são os exercicios continuos que faço. Dois annos passei martellando de noite o piano de um club e dei graças por ter, desse modo, um instrumento á minha disposição...
- Então o seu primeiro cuidado era possuir um instrumento - interrompemos, admirados.
- Se era! - frizou elle, com uma ponta de azedume. Passei oito annos sem ter piano. O senhor talvez não calcule o que representa isso para um homem fascinado pelo piano. Parece castigo, não é? Hoje em dia consigo tocar muita cousa classica, mas exclusivamente pelo meu proprio esforço.
- E as composições? Não lhe tem auferido lucros?
- Lucros? Eu vivo de liccionar, pois de outra forma não ganharia a vida.
- Bem. E quantas composições conta ate hoje?
- Mais de duzentas. A primeira foi um maxixe [polca], a que dei o titulo de “Você bem sabe”. O senhor de certo não conhece... É... Já faz muito tempo...
- Mas qual é a sua composição predilecta?
- Ah!... Isso é que não póde ter resposta definitiva, assim á queima-roupa... Gosto de algumas... Lembra-se do "Brejeiro"?
- Como não?
Ai, ladrãozinho! Dos teus labios de coral. (Tem dó!)
Dá-me um beijinho! Não te póde fazer mal. (Um só!)
- Todo o Brasil canta isso - concluiu elle num sorriso.
FOLHA DA NOITE. O perfil de Nazareth. São Paulo, 8 de setembro de 1924. 
Caricatura de Ernesto Nazareth, por Paim. Publicada na matéria supracitada.
Neste encontro entre os compositores Eduardo Souto, Ernesto Nazareth e Marcello Tupynambá, que por pouco não foi registrado em foto devido à "hora baça do crepúsculo", vemos algumas características de Nazareth descritas pelo jornalista: timidez e modéstia (quando questionado sobre os elogios de Darius Milhaud), associadas a uma fala de volume baixo. Sua surdez, já bastante presente aos 60 anos, também chama a atenção, embora possuísse uma “radiosa aparência de saúde”. Ao executar algumas de suas músicas ao piano, demonstra virtuosismo, “prodigiosa articulação”, “agilidade elétrica” nas mãos e “imprevistos floreios, tão ao sabor dos ‘choros’ cariocas”, reforçando que seu pianismo era constantemente imaginativo, sempre buscando novas possibilidades.
Na entrevista propriamente dita, Nazareth se considera autodidata tanto no piano, instrumento no qual toca “muita coisa clássica”, quanto na composição, embora mencione como seus mestres sua mãe (Carolina Augusta da Cunha Nazareth), que “chegou a causar admiração aos professores de sua época, sem nunca ter tido mestres”, e um “professor francês”, com quem teve oito aulas, e que na verdade se tratava do compositor negro Charles Lucien Lambert, nascido em Nova Orleans. Eduardo Madeira, compositor e pianista amador, com quem Nazareth estudou por cerca de dois anos, não chega a ser mencionado. Nazareth menciona o valor dos exercícios contínuos de técnica que faz ao piano, e lembra da época em que não possuía piano, e passou “dois anos martelando de noite o piano de um clube”. Depois revela que foram oito anos no total sem ter piano, que constituíram uma espécie de castigo “para um homem fascinado pelo piano”.
Carolina Augusta da Cunha Nazareth (mãe de Ernesto) e Charles Lucien Lambert (um dos professores de Nazareth).
Quando perguntado sobre lucros resultante de suas composições, afirma que “vive de lecionar, pois de outra forma não ganharia a vida”. E, ao falar de suas obras, relembra que possui mais de 200, cita a primordial polca-lundu Você bem sabe, e, como composição predileta, menciona com prazer o Brejeiro, que “todo o Brasil canta”, com a letra de Catullo da Paixão Cearense.
Menos de dois anos depois, Nazareth foi entrevistado pelo Diário da Noite, durante sua turnê em São Paulo. Na ocasião ele é tratado com grande honra e referenciado como “rei do tango” e “o criador do tango brasileiro” (embora este último título se aplique melhor a Henrique Alves de Mesquita):

O CREADOR DO TANGO BRASILEIRO
ERNESTO NAZARETH FALLA AO “DIARIO DA NOITE”
Ernesto Nazareth é um notavel compositor brasileiro a quem ninguem nega o titulo que merecidamente lhe é dado de “rei do tango”.
Foi elle quem, desde que os seus dedos espertos se familiarisaram com as teclas do piano, se preocupou em crear essa musica tão nossa, ao som da qual se acertaram immediatamente os passos do maxixe, dansa que a tornou popular. Desde que Nazareth, estylisando a polka, dando-lhe um cunho essencialmente nacional, creou o tango, todos os maxixes, chulas e sambas carnavalescos não têm senão repetido, embora de uma fórma mais simples, as mesmas phrases, os mesmos motivos, que a alma popular brasileira consagra e o povo recebe com bôa disposição para cantarolar por toda parte, a qualquer momento e em quaesquer circumstancias.
Informações de Catullo Cearense
Há já alguns dias que Ernesto Nazareth está entre nós. É a primeira vez que sáe de sua terra natal - São Sebastião do Rio de Janeiro. Com quanto receio não aportou a estas plagas desconhecidas! Há já bastante tempo que Nazareth planejara tal viagem. Diziam-lhe, porém, que a platéa de S.Paulo era demasiadamente exigente e parcamente exteriorisava os seus sentimentos... Por isso, sempre vacilou.
Catullo Cearense deu-lhe, porém, informações mais agradaveis da Paulicéa e aconselhou-o, ultimamente, pela “Gazeta de Noticias”:
“Não vacille. Vá. Tenho confiança no seu talento e plena confiança na grande alma e grande cultura dos paulistas. Quem lhe disser que a platéa é fria, ou mente por mentir, ou foi um blóco de gelo que cahiu numa fornalha desfazendo-se todo. Não quero dizer mais nada, porque não desejo arrebatar a surpreza da cultura paulista, quando lhe ouvir, maravilhada, as maravilhosas composições em que a sua alma canta com todos os gorgeios da passarada do Brasil.”
Paulicéa! Como és formosa!
Estando em S.Paulo, não podiamos deixar de ouvil-o. Recebeu-nos Ernesto Nazareth com a maior amabilidade, na residencia do sr. Jacyntho Silva, onde se acha hospedado com o maior carinho e rodeado de uma atmosphera de amizade sincera e dedicada, como elle proprio confessou.
Nazareth é a modestia personificada. Chega a ultrapassar as raias do commum, o acanhamento que seu semblante immediatamente revela ao ser obrigado a se referir a si proprio.
- Sou da Capital Federal - declarou-nos - e é a primeira vez na minha vida que ponho o pé fora de lá. S.Paulo me tem encantado de uma maneira irrelatavel. O circulo de amigos que em redor de mim logo se apresentou é grande. Bem maior do que o que mantenho no meu socegado recanto de Ipanema. Pretendo realisar algumas audições em Santos, Campinas e nesta capital. Realisarei antes, porém, uma audição especial para a imprensa em dia opportunamente fixado.
Mas... nunca pensára antes em vir a S.Paulo? - interrompemos. Com ar de quem procurava lembrar-se de um facto não mui remoto, o velho musico nos respondeu:
Há poucos anos, quando Antonietta Rudge Miller realisou um concerto no Rio de Janeiro, lá estiveram tambem, para assistil-o, o fallecido professor Chiaffarelli e o professor Cantù. Recebi então um convite para me fazer ouvir pelos tres, na pensão em que estavam hospedados. Timido embora, executei, com o cuidado que a presença dos mestres exigia, uma série dos meus tangos, que os encantou deveras. A um dado momento d. Antonietta me disse: “Sabe que eu também toco alguns dos seus tangos?” Com que alegria e prazer não ouvi, executado por mãos que honram, o meu “Nenê”?!...
O maestro Chiaffarelli, tendo abandonado o Rio de Janeiro sem conseguir despedir-se de mim, fez-me, por intermedio de d. Antonietta, presente de uma linda cigarreira com meu nome gravado, a qual guardo como uma das minhas reliquias. Depois disso, as vezes que elle me escreveu aconselhando-me a vir para S.Paulo foram innumeras. Eu, porém, pobre e mal ganhando para o meu sustento e de minha gente, não podia pensar em tal. Afinal, depois de tantos annos, realisei agora a minha viagem e os dias que aqui tenho passado serão para mim inolvidaveis. Consagrei-os já numa composição, ainda no prelo, a que intitulei: “Paulicéa, como és formosa!”
Algumas horas deliciosas
Sentando-se ao piano, a nosso pedido, Ernesto Nazareth executou o seu tango “Paulicéa, como és formosa!”, com aquella agilidade peculiar aos seus dedos e com aquella firmeza que as musicas do genero requerem. A melodia delicada e harmoniosamente desenvolvida encerra bellezas que a nossa capacidade artistica mal podia perceber, mas que o nosso coração entendia perfeitamente como emanação sincera de um outro coração grato á terra e á gente que o fazia pulsar de alegria. Depois de “Paulicéa, como és formosa!”, Nazareth soube nos proporcionar agradaveis momentos, executando as suas musicas de maior sucesso.
“Brejeiro” - tango que pelo seu caracter eminentemente popular foi cantarolado por toda a gente, nos fez reviver tempos passados, ao mesmo tempo que nos deu plena consciencia do presente, conservando-nos o seu saltitante rythmo compassado mais acordados do que nunca. Assim tambem o “Odeon” e o “Turuna” executados com aquella habilidade do autor, fez nascer dentro de nós um quê mysterioso que ao mesmo tempo que impellia o nosso corpo para a dansa, retrahia a nossa alma para dentro de si propria num silencio voluntario, a se embalar na rêde melodiosa de sons, tecida pelos ageis dedos do artista.
Passaram-se os segundos, os minutos, as horas, deliciosamente, nas quaes Nazareth tocou ainda: “Carioca”, tango; “Passaros em festa”, valsa delicadissima que nos faz realmente sentir a passarada de nossa patria a saudar o sol pela manhã; “Plangente”, tango estylo habanera; e um mimo de delicadeza “Corbeille de Fleurs”, gavotta formada por uma successão de notas - flôres - enfeixadas e artistica e harmoniosamente dispostas pela inspiração ardente do artista. O “Batuque”, executado em ultimo logar, deixou optima impressão no nosso espirito. Henrique Oswaldo fez questão que essa composição de Nazareth lhe fosse offerecida. Aliás, o seu proprio autor manifestou-nos o desejo de executal-a em publico, incluindo-a no programma de um de seus recitaes.
Caminho de flores e espinhos
Ernesto Nazareth teve como sua primeira guia, no teclado do piano, a sua propria mãe. Mais tarde, sentindo quéda para a arte tomou, como professor, a Lucien Lambert que, tendo que regressar a Paris, ministrou-lhe apenas oito lições. Desde então, Nazareth caminhou sósinho.
Autor de mais de trezentas (sic) composições de valor comprovado, admiradas e executadas muitas dellas por autoridades como Guiomar Novaes, Magdalena Tagliaferro, Autonietta Rudge Miller, e outras, Ernesto Nazareth tornou-se um nome popular em todo o Brasil. A primeira musica brasileira introduzida em Paris, era de sua lavra. O seu maior merecimento é o de não se ter deixado contagiar pelas vibrações dissonantes da influencia extrangeira, no turbilhão desenfreado da “jazz-band”. Finalmente, Nazareth é o compositor do “Apanhei-te, cavaquinho!”, musica executada sempre com grande successo pela banda de marinheiros nacionaes, em terras extrangeiras e apresentada como producto genuinamente nacional.
DIÁRIO DA NOITE. São Paulo, 2 de junho de 1926
A matéria começa dizendo que Nazareth já planejava esta viagem há tempos, mas, como ouvia dizer que a plateia de S. Paulo era fria e “demasiadamente exigente (...), sempre vacilou”. Catullo é creditado como a pessoa que desmentiu estas informações e estimulou Nazareth a ir para a turnê, em uma carta publicada na Gazeta de Notícias (a matéria original, publicada em 14 de março de 1926, pode ser lida aqui, no topo esquerdo da página). Novamente são ressaltados o acanhamento e modéstia do compositor, chegando a “ultrapassar as raias do comum”. Nazareth revela que acabou encontrando um grande círculo de amigos na capital paulista, “bem maior do que o que mantém em seu sossegado recanto de Ipanema”, e comenta as demais cidades em que pretendia se apresentar (inclusive em Santos, recital que provavelmente não se concretizou).
Nazareth menciona uma ocasião em que tocou uma série de seus tangos para a famosa pianista Antonietta Rudge, seu falecido professor Luigi Chiaffarelli (também mestre de Guiomar Novaes) e o maestro italiano Agostino Cantù, na pensão em que estavam hospedados no Rio de Janeiro. Rudge tocou para Nazareth seu tango “Nenê”, e Chiaffarelli insistiu em inúmeras cartas subsequentes que Nazareth fosse a São Paulo; e neste ponto a justificativa para não ter ido é a falta dinheiro. É difícil saber quando exatamente se deu este encontro, por ocasião de um concerto de Antonietta Rudge no Rio de Janeiro “há poucos anos”, pois temos registro de diversos recitais da pianista no Rio desde pelo menos 1913.
A pianista Antonietta Rudge, que tocou para o compositor seu tango brasileiro Nenê no início do século XX, e seu professor Luigi Chiaffarelli (ilustração de uma medalha oferecida por seus alunos)
Nazareth então executa para o jornalista sua recém-publicada homenagem a São Paulo “Pauliceia, como és formosa!...” (composta desde 1921, com outro título), e também Brejeiro, Odeon, Turuna, Carioca, Pássaros em Festa, Plangente, Corbeille de Fleurs, e Batuque (que, segundo a matéria, foi dedicado a Henrique Oswald a pedido deste). Assim como na matéria de 1924, sua execução ao piano é elogiada, destacando-se a “agilidade peculiar” e “firmeza” com que toca.
Novamente, seus professores mencionados são sua mãe, e Lucien Lambert. Além de Antonietta Rudge, o jornalista elenca Guiomar Novaes e Magda Tagliaferro entre os admiradores de Nazareth. Infelizmente não há registro de que alguma das três tenha tocado suas músicas em público ou em gravações (embora Luiz Antonio de Almeida afirme que Guiomar Novaes tocava suas composições em reuniões de fórum íntimo).
Guiomar Novaes e Magda Tagliaferro, duas das maiores pianistas brasileiras, apontadas como admiradoras da obra de Nazareth.
Por fim, sua brasilidade é elogiada, e o fato de não ter se “deixado contagiar pelas vibrações dissonantes da influência estrangeira” e dos jazz-bands (informação que irá ter ressonância na última entrevista mencionada no fim deste texto).
Pouco mais de um mês depois, é publicada outra matéria contendo um relato que quase se configura em uma entrevista com Nazareth, desta vez pelO Estado de São Paulo:

COISAS DA CIDADE
UM ARTISTA BRASILEIRO
Conversava-se ha dias, numa roda, sobre o retrahimento da nossa alta sociedade quanto a festas intellectuaes e concertos, - quando um dos interlocutores observou:
- A mediocridade intellectual e artistica da nossa sociedade - do nosso escol social, como dizem as folhas, - revela-se ainda por outro facto: nunca se viu uma dessas familias ricas ou abastadas abrir os seus salões para um grande artista nosso ou estrangeiro. Soube-se, por acaso, que Magdalena Tagliaferro, a nossa grande pianista, tenha aqui tocado em algum salão particular? E Souza Lima? E Rubinstein? E Brailowsky? E Antonietta Rudge? E Guiomar Novaes? E Pery Machado (violinista)?...
- Com effeito, não ha em S.Paulo esse costume.
- Não ha, e essa falta só depõe contra o bom gosto das nossas familias que se prezam de distinctas e ricas. Entretanto, Souza Lima e Magdalena Tagliaferro tocam nos salões de familias parizienses: os argentinos opulentos da avenida Alvear, em Buenos Aires, convidam sempre para audições de grandes artistas as familias de suas relações. É um meio dos ricos se deleitarem e deleitarem os amigos, auxiliando e estimulando, ao mesmo tempo, os artistas de valor. E depois, como estes percorrem o mundo, recolhendo impressões, é a maneira de lhes dar a conhecer a vida social no que ella tem de mais intimo e precioso, que é a familia.
- Mas as familias ricas de S.Paulo - acudiu outro - não se preoccupam com essas coisas. De artistas, só merecem interesse para a alta roda paulistana, os de cinema...
Ora, quis o acaso que, na mesma noite, assistissemos a um concerto interessantissimo, numa residência particular. De familia abastada? - Longe disso. A sala de visitas não tem mobiliario a Luiz XV, nem tapetes carissimos - mas, assim modesta, vale mais, em bom gosto e distincção, que muitos salões dourados: é uma verdadeira galeria de arte, com telas numerosas e preciosissimas, reunidas pacientemente, amorosamente, por um verdadeiro conhecedor como ha poucos entre nós. E depois, a distincção e fidalguia tão simples e despretenciosa dos donos da casa, a simplicidade e o encanto das visitas, puzeram logo o intruso perfeitamente á vontade.
- Oh! É o senhor! Foi-nos dizendo á porta a amavel dona da casa. Entre e venha ouvir comnosco o Nazareth.
- Nazareth! Quem é?... - Um compositor brasileiro, e de musicas para piano, musicas admiraveis...
Estava já ao piano o compositor. Continuou a tocar sem se perturbar com a nossa chegada, aliás discreta. Musica simples e encantadora, bem longe da xaropada corriqueira que geralmente marca os passos aos dansarinos. Findo o tango - “Brejeiro”, se não nos enganamos - Nazareth teve logo rendida a assistencia. Tambem, a Vienna dansarina de 1860 se encantava com as valsas de Strauss, que ainda ha pouco, por occasião do centenario do “rei da valsa”, eram por um critico consideradas obras de arte. “Batuque”, “Turuna”, “Tenebroso”, “Nenê” são outras tantas pequenas obras de arte de musica essencialmente, fundamente brasileira, ora cadenciada e lenta, ora viva e ligeira, mas sempre repassada de languidez e doçura, e tão agradavel de dansar como de ouvir. “Apanhei-te, cavaquinho!”, por exemplo, é um desses achados felizes que dariam celebridade mundial a um artista que não fosse brasileiro como Nazareth, mas norte-americano, por exemplo...
- E sabe que nos Estados Unidos já se tocam os seus tangos? Disse alguem ao pianista. Sei que um viajante brasileiro deu a algumas orchestras americanas varios tangos seus e, a esta hora, as “jazz-bands” de Nova York já adaptaram aos seus instrumentos o “Apanhei-te, cavaquinho!” ou o “Batuque”... Nazareth ouvia sorrindo, ouvia com certa difficuldade, as mãos em concha no ouvido, e toda a sua physionomia era contentamento e gratidão. Viera passar tres dias em S.Paulo, com o seu amigo Jacintho Silva, e ha tres mezes que aqui está, rodeado de sympathia e apreço. E causa pasmo saber que este artista de talento tão espontaneo já precisou vender o tango “Brejeiro” por cincoenta mil réis... - P.
O ESTADO DE S.PAULO. São Paulo, 18 de julho de 1926;
Aqui vemos Nazareth tocando no salão de uma residência em São Paulo seu tango Brejeiro, em um recital particular. Alguém pergunta ao pianista “E sabe que nos Estados Unidos já se tocam os seus tangos?” (desde 1914 algumas músicas de Nazareth eram tocadas na Europa e EUA, como parte da febre do maxixe no exterior, que resumi neste texto), porém Nazareth, talvez tímido por não escutar direito, apenas sorriu, em gratidão.
Em 1930, foi publicado no Correio da Manhã um interessante relato de uma visita que o compositor Eustórgio Wanderley fez a Nazareth.

O QUE É NOSSO
ERNESTO NAZARETH
O REI DO TANGO BRASILEIRO

Não é possível falar d’“o que é nosso” sem lembrar o velho pianista Ernesto Nazareth, com razão cognominado - o rei do tango brasileiro. Jardim Sul América, em Laranjeiras, n. 76, apartamento 146. Declinamos o fim da nossa visita e emquanto aguardamos na elegante “sala de estar” do artistico apartamento a vinda do maestro, avisado da nossa presença alí, palestramos com a sra. Eulina Nazareth, sua filha.
- Meu pae vive aqui muito retraido, raramente vae á cidade. Passa o tempo escrevendo suas musicas ou as executando ao piano. O piano estava, realmente, aberto e, a um canto da tampa do teclado, um cartão de prata com os seguintes dizeres: “Ao illustre compositor Ernesto Nazareth seus admiradores de S.Paulo. Julho de 1926”.
- Esse piano foi um presente que lhe offertaram quando elle esteve lá ha uns quatro annos. Ernesto Nazareth apparece bem disposto, physionomia jovial.
- A que devo a honra dessa visita? Vivo agora aqui tão esquecido...
- Nem tanto, e a prova de que não o esquecemos é estarmos aqui para o ver e ouvir.
- A respeito de musica?
- Sim, d’“o que é nosso”, da nossa musica...
- Que hei de dizer?
- Isso esta hoje muito differente. Ouço ás vezes musicas de “fox-trots” que dizem ser brasileira, porém que de brasileira nada têm. É a musica dos “novos”... Rapazes de coragem, hein?...Os antigos, como eu, ficaram no canto.
- Nunca mais tocou em publico?
- Aqui não. Ha uns dez ou doze annos toquei na sala de espera do antigo cinema Odeon com uma boa orchestra. E muita gente pagava entrada sómente para ficar ali ouvindo minhas musicas, meus tangos; não fazia questão de ir ver a fita. A ultima vez que toquei em concertos foi ha quatro annos em S.Paulo.
Um meu amigo, o Camaz, sempre instava para que eu fosse a S.Paulo, dizendo-me que minhas composições eram muito procuradas ali e meu nome bastante popular tambem. Tanto insistiu para que eu fosse dar ali uma audição das minhas musicas, que eu fui. Receberam-me carinhosamente. Depois eram tantas as visitas, os convites para festas, passeios aos pontos pittorescos da cidade, que eu comecei a desconfiar de que tinha mesmo algum merecimento... Um grupo gentil de moças organizou uma festa em que muitas tomaram parte declamando lindos versos e em que eu executei minhas musicas. A gentileza e generosidade dos meus bons amigos de S.Paulo culminaram com a offerta desse piano.
- Se não lhe causasse incomodo, poderia o maestro ter a bondade de executar algumas das suas mais recentes composições?
- Pois não. Com prazer.
Sentando-se ao piano todo elle se transfigura. O aspecto melancolico que tinha ao recordar, saudoso, sua triumphal visita a S.Paulo foi substituido por uma expressão natural de alegria.
E começou a tocar...
Numa revoada cascateante de sons perspassaram pelo teclado os novos tangos: “Cruzeiro”, “Paulicéa, como és formosa”, por fim “O Futurista”, que offerecemos aos nossos leitores por nimia gentileza do autor. Ouvindo essa musica disse um dos nossos mais apreciados maestros:
- Fez bem chamando-a “O Futurista” pela estranheza de certas dissonancias muito bem achadas.
- E dos antigos não nos faz ouvir nenhum?  Perguntamos-lhe.
- Se tem prazer nisso é fácil.
E o rythmo “gingante” do “Brejeiro” espalhou-se pela sala. Seguiram-se-lhe “Nenê”, “Bambino” e “Plangente”... Evocando o passado estava elle, curvado sobre o marfim das teclas como para ouvir melhor aquellas harmonias executadas, ás vezes, num suave “pianissimo” que ia num progressivo crescendo até ao “forte” energico, com bravura. Estava commovido até as lágrimas.
É preciso notar que os tangos de Nazareth não têm rythmo dolente, quasi morbido, dos tangos argentinos. Participam mais das “habaneras” cubanas, têm as syncopes da dansa crioula de Havana e não raro, o “affretamento” das quialteras.
- Se não está cansado, disse elle, ouça uma valsa de que o saudoso barytono Larrigne (sic) De Faro muito gostava e que, como não tivesse título, elle baptisou por “Elegantissima”. Eu disse que bastaria chamal-a “Elegante”, se elle assim a achava; porém, De Faro respondeu que a baptisava por “Elegantissima”, em vista de não haver um outro superlativo ainda “mais absoluto...”
Executou-a ao piano. As phrases eram realmente muito elegantes, o desenho melodico simples, porém de um encadeamento perfeito.
- Quem foi seu mestre? Perguntámos.
- Não tive. Comecei a estudar com a minha mãe que era uma eximia pianista. Aos onze annos fiz minha primeira composição, uma polka. Ainda me recordo della. Era assim... E executou sua primeira composição, uma musica saltitante, alegre, já deixando entrever como seria as mais que lhe succedessem.
Desejamos ouvil-o tocar mais outras musicas suas, porém receiavamos fatigal-o. Isso mesmo dissemos á sua digna filha.
- Não tenha receio; nos tranquillizou ella. O papae é resistente como o vovô.
- Como?  Ainda vive o pae delle?!
- Pois não. Está com 93 annos e ainda trabalha, diariamente, como ha 60 annos passados, na Alfândega, onde é despachante.
Nesse momento a sra. Maria das Mercês (sic), que havia saido da sala por alguns momentos, voltava dizendo:
- Fui chamar o “nosso vôvôzinho”, que ahi vem.
Com effeito surgiu na porta a figura sympathica do sr. Vasco Nazareth, firme, aprumadinho, não parecendo ter mais de 50 e 60 annos.
Felicitamol-o por isso.
- Qual nada! Protestou elle sorrindo. Estou muito acabado, cansado. Imagine que somente na Alfândega trabalho ha 67 annos. Estou muito velho...
- Não diga isso, porque muitos moços de hoje invejam os seus 93 annos sadios e uteis.
Era tempo de nos retirarmos.
Agradecemos a gentileza do acolhimento e nos despedimos. 
Descendo a rua ouvimos ainda sons de piano. Reconhecemos a musica: era o tango “Espalhafatoso” que Ernesto Nazareth executava na continua evocação do seu passado de glorias. Commovedora evocação...

Eustórgio Wanderley
 CORREIO DA MANHÃ. Ernesto Nazareth, o rei do tango brasileiro (“O que é nosso”).  Eustórgio Wanderley. Rio de Janeiro, 15 de junho de 1930.

Aqui, Nazareth, então com 67 anos, aparece bem disposto, com fisionomia jovial, porém com um tom melancólico, ao afirmar que vive agora lá esquecido. Eulina, sua filha, explica que ele vive ali muito retraído, que raramente vai à cidade, e que passa o tempo escrevendo suas músicas ou as executando ao piano.
Nazareth afirma que a “música dos novos”, os fox-trots, nada têm de brasileira, e que os antigos como ele “ficaram no canto”. Isto reforça brasilidade sempre apontada em sua obra, porém, como curiosidade, vemos quatro fox-trots compostos por Nazareth, possivelmente por influência dos editores, tendo sido dois deles publicados durante sua vida.
Ernesto faz referência às últimas vezes em que havia tocado em público no Rio de Janeiro, por volta de 1917, no Cinema Odeon com a Orquestra Andreozzi, e lembra com afeto sua turnê a São Paulo em 1926, durante a qual foi presenteado com um piano, utilizado regularmente pelo compositor. Desta vez, o responsável pela sua ida a São Paulo é apontado como sendo seu amigo José Camaz, cantor de modinhas amador.
A pedidos, Nazareth toca com prazer algumas de suas recentes composições: “Cruzeiro”, “Pauliceia, como és formosa!...”, e “O Futurista” (que foi impresso junto com o artigo do jornal), e depois “Brejeiro”, “Nenê”, “Bambino”,  “Plangente”, “Elegantíssima”, “Você bem sabe” e “Espalhafatoso”.
Sua postura curvada sobre o piano para ouvir melhor é mencionada (recorrente no depoimento de várias pessoas que o ouviram), e se comenta que suas interpretações faziam amplas gradações de dinâmica, que iam do suave pianíssimo em um “progressivo crescendo até o forte enérgico, com bravura”. As síncopes de sua música são comparadas às das habaneras cubanas, mais tercinadas (i.e. menos rigorosas, mais amolecidas).
Quando perguntado sobre seus mestres, desta vez menciona apenas sua mãe, como exímia pianista. E explica que sua primeira composição (a polca-lundu “Você bem sabe”) teria sido composta aos 11 anos, uma informação diferente da consagrada, de que teria sido aos 14 anos, provavelmente um descuido. Diante da preocupação do entrevistador de que Nazareth iria se cansar, Eulina afirma seu pai é “resistente como o vovô”. Então, neste ambiente familiar (que já não contava mais com Theodora Amália, esposa de Nazareth falecida dois anos antes), descobre-se que o pai de Ernesto, Vasco Lourenço, estava vivo, com 93 anos, e que ainda trabalhava na Alfândega. Maria Mercedes, companheira de Eulina, busca-o para uma breve conversa. Ao saírem de lá, os jornalistas ouvem de longe Nazareth executando seu tango “Espalhafatoso”.
A última participação que vemos de Nazareth na imprensa é na matéria de seis páginas publicada na revista A voz do violão, em 1931. (Acesse a matéria completa aqui). O texto faz um amplo apanhado da vida de Nazareth, e certamente consultou-o diretamente, além de sua família. Porém não há uma citações diretas de suas falas, com exceção do trecho:
(...) Conserva, contudo, o artista, a extrema sensibilidade de sua alma de eleito. E não raro, deixa o piano com as lágrimas bailando-lhe nos olhos claros... Sae-lhe, então, baixinho, essa queixa que traduz todo o amargor de seu temperamento dolorido:
“ - Eu nunca fui comprehendido!...”
A VÓZ DO VIOLÃO. Ernesto Nazareth. Francisco Acquarone. Anno I - nº 2. Rio de Janeiro, março de 1931; e Anno I - nº 3. Rio de Janeiro, abril de 1931. 

Na pesquisa biográfica de Luiz Antonio de Almeida, vemos transcritas algumas anotações que Nazareth deixou em uma folha de papel, escritas por volta de 1931. Dentre alguns itens corriqueiros, vemos uma frase que talvez Nazareth sempre tenha guardado consigo, mas talvez nunca a tenha expressado devido a sua timidez e modéstia: “Mostrar aos Snrs. criticos, o que tenho sobre o meu conceito para elles tratarem de mim com mais acerto”. Além disso, duas anotações que mostram preocupação com seus direitos autorais:

Tratar dos direitos de minhas músicas, vendidas para piano nas lojas de Arthur Napoleão, Bevilacqua e Vieira Machado e que essas cobram direitos de audições promovidas pela Sociedade Theatral Beneficente de Autores Nacionais; preciso saber si os direitos que elles cobram se terão direito a taes abusos, cobram tudo tirando os direitos reservados aos autores - Procurar...
Fallar também sobre músicas vendidas para pianolas sem consentimento meu pelo Snr. Nascimento e sobre o negocio do Snr. Figner com as casas de músicas, sobre os discos que se apoderaram sem leis bastante para o fazerem.
Neste último trecho, temos a informação reveladora de que os 19 rolos de pianola produzidos pela Casa Beethoven desde 1912 foram vendidos sem o consentimento de Nazareth. Isto afasta portanto a possibilidade de estes rolos terem sido tocados pelo próprio autor, sendo mais provável que tenham sido perfurados manualmente, como era a praxe dentro das possibilidades da época no Brasil (ver o texto A indústria de rolos de piano brasileiros).
Outro documento do próprio punho de Nazareth é uma breve carta lisonjeira enviada à professora de declamação Noêmia do Nascimento Gama, em 21 de outubro de 1926, em agradecimento ao Festival Ernesto Nazareth que ela organizara no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo 24 dias antes.

S.Paulo, 21 de outubro de 1926.
Exma. Snra. Da. Noemia do Nascimento Gama:
Dentre as figuras femininas que hei conhecido e que pela cultura e pelo espirito têm ficado na minha admiração, a de V.Excia. occupa lugar de inconfundivel destaque. Com a sua dedicada maneira de ver, sentir, V.Excia. já adivinhou do meu reconhecimento por toda a captivante e fidalga bondade que me tem dispensado. Eu lhe não posso dizer mais cousa nenhuma e limito-me a curvar-me e a beijar-lhe as mãos, que devem ficar cheias das flores de gratidão que ora lhe envio.
Ernesto Nazareth
Coleção Luiz Antonio De Almeida. Rio de Janeiro;

Imagem da carta original de Ernesto Nazareth a Noemia Gama, cedida ao site EN150 por Luiz Fernando Gama Pellegrini, neto de Noemia Redondo do Nascimento Amaral Gama.

Na década de 1980, Luiz Antonio de Almeida realizou uma série de entrevistas com Julita Nazareth Siston (sobrinha de Ernesto), Nair Carvalho (filha Gabriella Cruz Fagundes, aluna de Nazareth), e a pianista Maria Alice Saraiva (que conheceu Eulina Nazareth, filha de Ernesto). Destes registros, podemos extrair algumas citações atribuídas a Nazareth:

“Duas coisas dão-me imenso prazer: uma pessoa a ouvir-me com reverência e um pianista “desconcertado” ao tentar transpor alguma dificuldade encontrada em minha música!...”
Ernesto Nazareth
Nazareth Siston, Julita. Entrevista concedida a L. A. Almeida. Rio de Janeiro, s/d;

“Minhas músicas não foram feitas para serem dançadas; mas, sim, ouvidas!...”
Ernesto Nazareth
Nazareth Siston, Julita. Entrevista concedida a L. A. Almeida. Rio de Janeiro, s/d;

“Vendo minhas músicas devido às dificuldades financeiras nas quais me encontro; todavia, o preço que os editores pagam por elas, eu recebo como se fossem bofetadas!...”
Ernesto Nazareth
Carvalho, Nair. Entrevista concedida a L. A. Almeida. RJ, 16 de julho de 1984;

“Era apolítico e, certa vez, perguntado a qual candidato a Presidência da República dava seu apoio, na acirrada polêmica que se estabeleceu entre as candidaturas de Arthur Bernardes e Nilo Peçanha [em 1922], ele respondeu:
- Não sou político. Meu mundo é o das notas... musicais!...”
Carvalho, Nair. Depoimento por escrito enviado a L. A. Almeida. RJ, 8 de julho de 1984;

“Villa, você está maluco?... Sua música é uma loucura; dela até o Pierrot sai correndo!...”  [após Villa-Lobos tocar algumas de suas novas composições durante uma visita a Nazareth. Pierrot era o fox-terrier de Ernesto]
Ernesto Nazareth
Saraiva, Maria Alice da Silva Pinto. Entrevista concedida ao autor. RJ, 8 de setembro de 1985;
“Mesmo que uma música apresente dissonâncias, não precisa ser necessariamente desprovida de alguma beleza!...“ [no contexto de seu o tango O Futurista]
Ernesto Nazareth
Saraiva, Maria Alice da Silva Pinto. Entrevista concedida ao autor. RJ, 8 de setembro de 1985;

Para finalizar, nada mais apropriado do que ouvir o próprio Nazareth ao piano. Ao todo ele gravou oito músicas: quatro por volta de 1912 juntamente com Pedro de Alcântara ao flautim, e quatro em 1930 ao piano solo.
ca. 1912 (com Pedro de Alcântara, flautim)

1930
As duas faixas a seguir não foram lançadas na época, por serem takes rejeitados (provás más) pela gravadora. Foram preservadas graças ao musicólogo e pianista Aloysio de Alencar Pinto, que forneceu o acetato único para ser reproduzido no LP “Os Pianeiros” (FENABB 114), lançado em 1986. As gravações a seguir são digitalizações novas feitas pelo Instituto Moreira Salles a partir do acetato original neste ano:

Selos de 78-RPMs presentes no acervo particular do musicólogo e pianista Aloysio de Alencar Pinto. Imagens gentilmente cedidas por seu filho Georges Mirault.


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COMENTÁRIOS

Euler Silva - 23.06.2014
Muito bom Alexandre. Seu trabalho é uma pérola valiosa.
Luiz Carlos Almeida de Araujo - 20.06.2014
INCANSÁVEL
Graças ao seu trabalho, meu incansável Alexandre Dias, Nazareth agora pode ser mais facilmente desvendado e querido por todos. os "mystérios", pouco a pouco, vão sendo revelados de uma forma clara, simples, que permite também aos admiradores - não excluindo, evidentemente, os pesquisadores, grupo no qual também me incluo - uma compreensão mais justa sobre a obra nazarethiana e sobre a figura de Ernesto em si, com lados mais ocultos e facetas mais conturbadas. Nós, os músicos, lhe agradecemos pelo trabalho que você tem feito por mais um injustiçado do nosso Brasil musical.




♥Ernesto Júlio de Nazareth (March 20, 1863 – February 1, 1934) a Brazilian composer and pianist & and legendary, unrivaled Fred Astaire with Rita Hayworth ♥ Ƹ̵̡Ӝ̵̨̄Ʒ ♥This channel is non profit, non commercial . All trademarks and copyrights remain the property of their owners

Suicidio vs acidente, por Alexandre Dias

“(...)
Só minh'alma aqui ficou
Debruçada na amurada,
Olhando os barcos... os barcos!...
Que vão fugindo do cais.”

(trecho de "Canção do suicida" de Mario Quintana)
No post anterior apresentamos o relatório inédito que Jacob do Bandolim elaborou em 1959, por ocasião de suas investigações na Colônia Juliano Moreira, em cuja represa Nazareth morreu afogado em 1934. Jacob conclui assertivamente: Nazareth suicidou-se, não foi um acidente.
Os principais argumentos de Jacob que identifiquei são:
1) O caminho era perigoso. O caminho para subir até a represa da colônia durava 1 hora, era estreito, pedregoso e cheio de limo, atravessando uma mata muito fechada, com cobras e outros bichos. Os percalços eram grandes, levando a machucados nos pés. Isso desestimularia Nazareth a subir até a represa, pois não consta que Nazareth fosse adepto de esportes ou atividades ao ar livre, especialmente considerando que ele já estava com 70 anos. Se quisesse passear, iria a outros lugares mais próximos que eram bonitos e pitorescos. (O biógrafo Luiz Antonio de Almeida, que percorreu o mesmo caminho duas vezes, em 1978 e por volta de 1993, também sentiu dificuldade em chegar lá. Porém observou que a trilha era capinada com frequência).
2) A represa não oferecia riscos para alguém se acidentar, e não possuía nenhuma beleza especial. Ela era pequena, medindo cerca de 12m x 40m, e atingindo cerca de 3m na parte mais profunda. O muro da barragem era largo o suficiente para atravessarem duas pessoas sem o perigo de caírem, medindo 80 cm em seu ponto mais largo e 40 cm em seu pouco mais estreito. Jacob afirma: “Eu corri muito mais risco no caminho do que lá. Lá não encontrei risco nenhum”. A queda d’água ao fundo tinha no máximo 12 metros de altura, e a represa era uma simples “caixa cheia de água”, que abastecia a Colônia. O único estímulo que alguém teria para ir até lá seria para tomar banho, diante de um calor tórrido, porém isto era proibido e Nazareth podia tomar banho em seu apartamento.
Cachoeira da represa da Colônia Juliano Moreira, s.d. Coleção Luiz Antonio de Almeida.
3) Nazareth tinha o propósito evidente de fugir. Nazareth era vigiado por Bento d’Ávila, enfermeiro particular contratado pela família, que ganhava mais de três vezes o salário de um guarda da época. Ele era “o guarda de Nazareth”, e tinha de vigiá-lo muito bem para garantir seu emprego. Nazareth passou pela bandeira da porta dos fundos, o que mostra que ele estava desesperado, queria
sair de qualquer maneira, burlando a vigilância. Se ele quisesse passear, esperaria uma hora, duas horas. Segundo Jacob, quem quer eliminar-se, “tem que se eliminar imediatamente, não espera para o dia seguinte. Ninguém planeja uma autoeliminação a prazo certo. Há a crise de desespero e a eliminação imediata, seja de que maneira for”. E acrescenta: “Nazareth tinha um objetivo específico ao sair pela bandeira da janela e subir até a represa, por uma mata fechada por uma hora de caminhada em terreno pedregoso. Se ele era vigiado, ele naturalmente não tinha ao seu dispor uma corda, uma faca ou um veneno para poder eliminar-se”.
4) Existe um senso de autossegurança no louco. “Todos os loucos têm sensação de segurança quando não querem se eliminar.” “Se você pega numa arma e aponta para um louco (...), ou ele avança para cima de você ou ele foge”. (...) Porém quando querem se eliminar, se entregam até ao abandono”, como aconteceu com outros doentes da colônia que morreram na mata.
Por último Jacob admite a possibilidade de ele ter suicidado em decorrência de uma crise aguda do estado doentio, ou até por um rasgo de lucidez. Porém conclui: “Mas que foi suicídio, para mim foi”.
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Para o biógrafo Luiz Antonio de Almeida, maior autoridade sobre a vida de Ernesto Nazareth, o raciocínio de Jacob faz perfeito sentido, porém ele acredita que não é suficiente para concluir que houve suicídio. Também não afirma categoricamente que foi um acidente, optando por deixar a questão em aberto. A única ressalva que faz sobre as informações de Jacob é que Nazareth não era alto, como Jacob afirmou, e também não pesava 90 quilos. Sua altura era de 1,65m e pesava cerca de 75 quilos.
Almeida, durante as pesquisas que iniciou quando ainda era adolescente, teve o privilégio de entrevistar em 1979 o “guarda de Nazareth”, como o chama Jacob: Bento Manuel Moreira de Ávila, o Bento d’Avila. Bento foi o enfermeiro particular de Ernesto Nazareth de novembro de 1932 até 1º de fevereiro de 1934, quando o compositor faleceu. Este depoimento inédito constitui um documento precioso, fundamental para a compreensão dos últimos anos de vida de Nazareth. Agradecemos a Almeida por permitir a citação de trechos deste depoimento e de seu livro não-publicado.
Durante o depoimento de Jacob, vemos a menção de que Nazareth fugira “pela bandeira da porta”. Antigamente as portas possuíam uma janela no topo, com o objetivo de fornecer ventilação. Porém, com o passar do tempo, essas janelas foram perdendo o propósito quando os prédios passaram a ter ar-condicionado e também por questões de segurança. Abaixo vemos dois exemplos de bandeiras de portas antigas:
O livro “Bandeiras de portas e janelas do Brasil no séc. XIX”, de Tilde Canti, 1983, oferece diversos exemplos de bandeiras, mostrando quão comuns eram: 
Não sabemos exatamente como era a porta do pavilhão em que Nazareth ficava, mas é surpreendente que ele tivesse conseguido alcançar a bandeira da porta e depois atravessá-la, pois provavelmente era alta e estreita.
Essa não foi a única tentativa de fuga de Nazareth, como veremos a seguir. O enfermeiro Bento d’Ávila afirmou a Luiz Antonio de Almeida: “era um velho forte, (...) simpático, risonho, alegre; sujeito que ninguém que visse dizia que ele era um doente mental. Bem arrumadinho, bem ajeitadinho”. Embora em um trecho ele afirme que “o Nazareth não pensava em sair, vinha cansado e queria ficar em repouso”, em diversos outros trechos afirma o contrário: “Andava bem e ligeiro. Era desses caras que vê ele aqui e quando procura não vê mais. Ligeirinho. (...) O negócio dele era liberdade, tocar piano e sair fora”.
Bento ressalta a dificuldade de tinha em manter Nazareth sob vigilância durante os passeios que faziam pela cidade: “uma vez, ele fugiu de mim na cidade, ali na saída da [Rua do] Ouvidor, quando a gente dobrava a Avenida para ir pro [Palácio] Monroe, para pegar um [ônibus para o] Méier... um negócio que viesse pra cima. Ele sempre procurava tirar distância e eu dava uma apertada nele. Ele dava uma corridinha e eu imprensava ele, se não ele escapulia mesmo. Um sujeito desse, depois que escapa, para se achar é difícil pra chuchu, ninguém viu, ninguém vê... Com ele, a gente não podia facilitar. A ideia fixa dele era se mandar, sem destino, sair correndo à toa”.
Após algumas crises nervosas, desde pelo menos 1930, Nazareth foi internado primeiramente em 10/07/1932 no Hospital de Neuro-Sífilis da Fundação Gaffrée e Guinle, que funcionava em um dos pavilhões do Hospício D. Pedro II, na Praia Vermelha (atualmente Palácio da Reitoria da UFRJ). Lá ele foi diagnosticado com sífilis, que nesta época não tinha cura. O melhor tratamento disponível era a malarioterapia, que, segundo o Dr. Heitor Carpinteiro Péres, um dos médicos da Colônia na época de Nazareth, informou ao biógrafo, “consistia em injetar a malária benigna no doente, para que ele tivesse cerca de oito acessos de febre, pois o micróbio da sífilis não resiste a altas temperaturas”.
Última foto de Nazareth. Hospital de Neuro-Sífilis da Fundação Gaffrée e Guinle - Hospício D. Pedro II, ca. 1933, (Coleção Luiz Antonio de Almeida)
Segundo Bento, “nessa casa [Fundação Gaffreé e Guinle], saíam com [Nazareth] para o pátio de manhã, e ele ficava bolando um jeito de sair dali. Acertou lá, com as ideias dele, uma árvore que tinha perto do muro. Trepou na árvore e se jogou para fora. Fraturou o braço direito”.
Depois disso voltou para casa, mas, segundo Bento, “ficou ainda mais nervoso” diante da impossibilidade de tocar piano. Em 04/03/1933 Nazareth foi internado na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, instalado em um dos mais antigos engenhos da região, o Engenho Novo. Segundo Luiz Antonio, “à época, desenvolvia-se junto àquela instituição o inovador tratamento de se aplicar aos doentes mentais atividades agrícolas como terapia ocupacional. Mas para a família Nazareth o que mais interessava era a distância, pois acreditava-se que isto pudesse desestimular o compositor quanto a sua obstinação por fugir”. Nas palavras de Bento, “a Colônia era beco sem saída, rua que não tinha saída”.
 
As professoras Eulina Nazareth (filha de Ernesto) (Acervo Ernesto Nazareth/IMS, ca. 1957) e Maria Mercêdes Mendes Teixeira (Coleção Luiz Antonio de Almeida, s.d.).
Nazareth era visitado por seu filho Ernestinho e sua esposa Esther, e com mais frequência por sua filha Eulina acompanhada da profª Maria Mercedes Mendes Teixeira. Nazareth aguardava Eulina na casa do administrador da Colônia, Antonio Gouvêa de Almeida, onde havia um piano de armário da marca Lux. Lá Nazareth tocava com frequência, por vezes misturando a parte de uma música com a parte de outra. Segundo Bento, “ele só reclamava por não o deixarem sair. Reclamava da filha, que tinha ele sobre pressão, não deixava fazer o que ele queria. Dizia ele: ‘- Foi pra isso que eu te criei, Eulina?’ ”.
Colônia Juliano Moreira. Fazenda-sede e antiga residência do administrador, s.d. Coleção Luiz Antonio de Almeida.
Segundo Almeida, “na última vez em que Eulina (acompanhada por Maria Mercêdes) viu seu pai, este lhe disse, apontando para a mata atrás do seu alojamento: ‘Descobri um caminho para Laranjeiras. Basta que eu siga por ali, que eu chego lá em casa!...’. Ainda segundo o biógrafo, Eulina, cerca de trinta anos depois, visitando a redação de O Globo, afirmou que “ele entrara na mata pretendendo ir visitar a família, que então residia no Matoso (Praça da Bandeira)”.
A Colônia ficava a cerca de 23km da Rua do Matoso (que por sua vez ficava próxima do bairro de Laranjeiras), tornando a afirmação de Nazareth coerente, embora o trajeto fosse inviável para se percorrer a pé. O mapa abaixo, do Google Maps, mostra a localização dos três pontos, da esquerda para a direita: (A) Colônia Juliano Moreira (Jacarepaguá); (B) Rua do Matoso (Praça da Bandeira); (C) Laranjeiras
Em um trecho do relatório de Jacob, vemos que os internos da Juliano Moreira ficavam soltos, chegando a passar a noite na mata, pois se viam restos de fogueira no caminho até a represa. Isto soa como um absurdo para os padrões de hoje, e provavelmente também o era para a época. Porém não sabemos o quanto Eulina estava ciente do risco que seu pai corria. O fato é que tentou proporcionar-lhe o melhor pagando a guarda particular de Bento d’Ávila, que se revezava dia sim, dia não na vigilância de Nazareth com o enfermeiro Necar Quintanilha, funcionário da Colônia. (Além disso, afirmou aos jornais, depois da morte do pai, que iria processar a Colônia). Portanto Nazareth não era livre para caminhar sozinho pelas dependências da Colônia.
A situação na Colônia Juliano Moreira entrou em franca decadência até 1980, quando o Fantástico fez uma reportagem denunciando o abandono que os doentes sofriam. Veja um trecho da reportagem original aqui. Lá ficou internado por mais de 50 anos o famoso artista sergipano Bispo do Rosário.
O biógrafo Luiz Antonio de Almeida, que visitou a Colônia pela primeira vez em 1978, descreveu-a como um “circo dos horrores” em que os doentes podiam ser encontrados nus, abandonados, em meio a muito descuido. Depois da reportagem, a Colônia passou a ser dirigida pelo Dr. Heimar Camarinha, que começou a colocar ordem na instituição.
Pesquisando na Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional, encontramos uma notícia surpreendente: dois meses depois da morte de Nazareth, um interno chamado Euclydes Guttierrez, de apelido “Carnaval”, foi encontrado afogado na mesma represa, depois de alguns dias de desaparecido. Ele, assim como Nazareth, tinha o impulso de fugir. A matéria do Correio da Manhã (10/04/1934) menciona a dificuldade de se chegar ao local, e também a morte de Nazareth recém-ocorrida.
Talvez seja cedo para afirmar se esta notícia enfraquece ou fortalece a tese de Jacob. O que fica claro é o risco que os doentes corriam.
No dia em que Nazareth fugiu, o dia era de sol, porém não muito quente segundo Bento, e quem estava a cargo de Nazareth era o enfermeiro Necar Quintanilha, que jogava damas na varanda na frente do pavilhão de Nazareth. Ernesto aproveitou-se da brecha e fugiu pela janela da porta dos fundos, como vimos, onde não havia movimento. Segundo Luiz Antonio, o pavilhão em que Nazareth ficava já havia sido derrubado quando realizou sua visita em 1978 (só sobrara o alicerce), porém há outros dois pavilhões próximos que ainda estão de pé e são idênticos ao de Nazareth. Dos três pavilhões, o de Nazareth era o mais afastado, mais próximo da represa.
Como informou uma notícia do Jornal do Brasil, publicada logo depois do desaparecimento, Nazareth “vestia na ocasião calça branca pijama e saiu sem chapéu”, e foi encontrado mesmo de pijamas. Sabe-se que Nazareth tinha roupa de passeio completa. Segundo Bento: “Nazareth tinha meia-dúzia, mais ou menos de ternos. Ele se vestia bem, usava linho quase que o dia todo, camisa, paletó, quase toda a roupa dele era de verão. Bem tratado ele era pela família”. Portanto, em circunstâncias normais, ele sairia do quarto de pijamas, mesmo que fosse para passear dentro da própria Colônia.
No depoimento de Bento, encontramos a importante informação de que, dentre os passeios que fazia acompanhando Nazareth, alguns eram para os lados da cachoeira: “E eu disse para [o diretor Antonio Gouvêa de Almeida, quando Nazareth desapareceu]: olha, o Nazareth não foi para fora, ele não iria para fora, ele só está para cá, pra dentro, ou entrou para cachoeira ou então lá para o Franco da Rocha [pavilhão próximo ao morro denominado Dois Irmãos], pois eram os caminhos que nós andávamos. Era alí que todos os dias nós saíamos, eu, ele, o Álvaro e o Ênio... [outros doentes internados]”.
Correio da manhã 03/02/1934
Nazareth fugiu da Colônia numa quinta-feira, dia 1º de fevereiro, possivelmente de tarde, coincidindo com o aniversário de Ernesto Nazareth Filho, o Ernestinho. Eulina visitava o pai todas as quintas-feiras às 15h, porém neste dia não foi visitá-lo, provavelmente devido ao aniversário do irmão (de acordo com depoimento de Julita Nazareth Siston, sobrinha de Ernesto, ao biógrafo Luiz Antonio de Almeida).Como uma derivação disso, perpetuou-se a informação de que Nazareth teria fugido para ir ao encontro do filho.
Porém quão lúcido estava Nazareth para se lembrar desta data? No prontuário de Nazareth presente na Colônia Juliano Moreira, que hoje está desaparecido e cujo conteúdo sobreviveu graças à transcrição que Luiz Antonio de Almeida fez, lemos que sua memória estava embaralhada: “(...) A sua associação de idéas frequentemente assume o typo maniatiforme com mudança constante de objectivo, sem dominio de uma mesma directriz ou de uma representação principal, antes obedecendo ás influencias fortuitas do ambiente ou parentesco phorico das palavras. Memoria: não fixa os factos recentes e narra baralhadamente os factos remotos de sua vida”.
Junto ao prontuário do compositor, Luiz Antonio de Almeida descobriu um bilhete escrito por ele, destinado ao pai, e que jamais chegou a seu destino. Diferentemente do que se possa pensar, seu pai, Vasco Lourenço da Silva Nazareth, estava vivo e contava então com 96 anos. Ele viria a falecer aos 101 anos apenas em 1940. Estas são as palavras presentes no bilhete, as últimas de Nazareth:
“Ao meu prezado Pai
18 de agosto de 1935.
Do Ernesto Nazareth, o sacrificado da
D. Mercedes e da D. Eulina também, passo
muito mal tenho tosse toda noite preciso
de Jatahy, me deixaram como um cachorro
doente, mas estou passando bem de saúde.
Disseram-me que iam trabalhar, me deixa-
ram sem dinheiro e dessa maneira de tra-
tamento chamado, que diabo de descaso pa-
ra mim, que fiz eu de mal Das 4 horas da
tarde e 6 fecham todas as portas, não a-
tendem a ninguem é urgente um automóvel
bem cedo de 12 h. ás 2 da tarde chova ou
não chova são esses os meus procedimen-
tos morais
Adeus a todos do recolhido E Nazareth ”

Como vemos, o ano, mês e provavelmente o dia estavam errados, o que enfraquece a tese de que Nazareth teria fugido para ir ao encontro de Ernestinho em seu aniversário.
Na verdade, em uma primeira leitura, o bilhete pode soar completamente caótico, próprio de um estado demente. Porém, como observa Luiz Antonio “nele, podemos observar certa ordem de raciocínio, pois apresenta introdução (‘Ao meu prezado Pai’), tema principal (suas queixas) e conclusão (‘Adeus a todos...’)”. Ele faz referência a ser “o sacrificado” de Eulina e Mercedes, o que é compatível com a reclamação de que elas não o deixavam fazer o que queria (“Foi pra isso que eu te criei, Eulina?”).
Este bilhete provavelmente ainda irá fornecer importantes insights sobre o estado mental de Nazareth e as circunstâncias que antederam sua morte. Chamam a atenção as várias queixas que expõe: 1) “passo muito mal”; 2) “me deixaram como um cachorro doente”; 3) me deixaram sem dinheiro; 4) “que diabo de descaso para mim, que fiz eu de mal[?]”; 5) Das 4 horas da tarde e 6 fecham todas as portas, não atendem a ninguém.
Luiz Antonio encontrou indícios de que o sofrimento de Nazareth poderia ser maior do que se pensava. Em entrevista ao biógrafo, Esmeralda de Almeida Monteiro, funcionária do Ministério da Educação, afirmou: “Naquela época, eu trabalhava como pagadora do então Ministério da Educação e Saúde. Eu todo mês ia à Colônia, só para pagar os funcionários. No mês seguinte à morte do Nazareth, eu ouvi de um funcionário, acho que era um rapaz do laboratório, um técnico, que ele, o compositor, teria sido vítima de uma violência sexual, por parte de outros internos. Isso é muito comum num lugar daqueles. E, a partir daí, traumatizado, ele teria procurado dar fim à própria vida”.
Isso reforça a tese de Jacob do Bandolim (embora ele não tivesse acesso a este depoimento). Outro registro importante que vai ao encontro destas ideias é a assertiva que Luiz Antonio encontrou na última página do prontuário do compositor: “suicidou-se”. Esta informação aparentemente aparecia isolada, sem qualquer explicação extra.
No depoimento de Álvaro de Sousa Gomes, amigo da família Nazareth, a Luiz Antonio de Almeida, encontramos uma informação que menciona as agruras que sofria: “alí estava o corpo de Ernesto Nazareth que, com certeza, teria procurado fugir, escorregando nas pedras, e morrera afogado... A minha impressão final é de que, em pequenos momentos de lucidez, ele não gostasse do ambiente e por isso procurou fugir, ao que consta, várias vezes. A minha impressão é de que não houve suicídio, mas, sim, acidente, ao procurar sair do lugar, em alguns momentos de lucidez ou, mesmo, ao contrário, de aborrecimentos com médicos ou outros pacientes” (os grifos são meus).
Quase passando despercebido, encontramos no final do bilhete uma maneira de se despedir que pode ser crucial: “Adeus a todos do recolhido E Nazareth”. O psiquiatra Dr. Heimar Camarinha, diretor da Colônia Juliano Moreira na década de 1980, sugeriu a Luiz Antonio que Nazareth estava se despedindo, o que transformaria esta nota em um possível bilhete suicida.
Porém a conclusão a que se chegou na época, e que acabou por constituir a versão oficial, era de que sua morte fora acidental. O então diretor da Colônia, Dr. Carlos Sampaio Corrêa, designou o Dr. Heitor Carpinteiro Péres para fazer reuniões de inquérito para apurar a morte de Nazareth, e este concluiu que a morte fora por acidente.
O enfermeiro particular de Nazareth, Bento d’Ávila também pensava assim: “E, de fato, ele tinha pego a estrada que levava lá pra cachoeira. E quando chegou no fim da estrada, exatamente onde tinha essa cachoeira, pequena, mas quando enche, em tempo de chuva, aquilo fica uma beleza, e tem, embaixo, uma lagoa, um depósito de água, uma barragem pequena... E o Nazareth entrou pela subida do negócio, e subiu, foi subindo, escorregou lá em cima, no limo, que na sombra, no mato, não dá sol e cria muito limo... E ele escorregou no limo e caiu dentro da barragem. E morreu lá.”
O corpo de Nazareth só foi encontrado três dias depois de seu desaparecimento, no dia 4 de fevereiro, por uma das turmas que se formaram por familiares e amigos pela mata em torno da Colônia, em busca de Nazareth. É comum encontrarmos a informação errônea de que ele foi encontrado na “Cachoeira dos Ciganos”, quando na verdade se tratava da cachoeira sem nome que desemboca na represa da Colônia.
O Paiz, 06/02/1934
Segundo uma notícia nO Globo desta época, o fato foi comunicado às autoridades do 24º distrito, tendo o comissário Paulo Nogueira providenciado para que fosse feita a remoção do cadáver para o Instituto Medico Legal, onde se concluiu que sua morte foi devida a asfixia por submersão. Uma matéria no jornal A Noite afirmou que Nazareth apresentava “equimoses no frontal direito e no supercílio”, não ficando claro se foram em decorrência de algum traumatismo.
Não fica claro também quão avançado era o estado de loucura de Nazareth. Apesar dos relatos de seu estado de confusão mental (agravados pela surdez avançada), vemos também relatos de que ele ainda tocava piano com relativa coerência. Além disso, referia-se com ironia ao próprio estado. Segundo Bento, em uma das vezes que foram visitar a casa de música Arthur Napoleão, Nazareth tocou a pedidos algumas músicas, que eram sempre bem recebidas, e depois afirmou aos presentes: “Estão vendo, viram só?... Eu estou maluco, mas ainda toco melhor que vocês!...”.
Em outra ocasião, Nazareth afirmou ao musicólogo Mozart de Araújo: “Tenho para este carnaval uma marcha que vai abafar. Quer saber o nome da marcha?”. Araújo mostrou-se interessado. Ernesto Nazareth, falando-lhe ao ouvido, disse: “O título é este: ‘Estás maluco outra vez?”. (história narrada por Orestes Barbosa em seu livro “Samba”, com complemento de Luiz Antonio de Almeida, que entrevistou Mozart de Araújo e a complementou).
Como podemos ver, o caso todo envolvendo a morte de Nazareth é complexo e exige uma análise multidisciplinar aprofundada, que procuramos iniciar com este texto.
E qual a sua opinião? Deixe-nos um comentário abaixo.
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Como uma curiosidade, o "Jatahy" que Nazareth menciona no bilhete tratava-se do “Xarope de Alcatrão e Jatahy”, amplamente divulgado nos jornais da época, e que possuía uma propaganda cômica:

Revista “O Gato – Álbum de caricaturas”, 24/02/1912.
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Agradecemos ao Instituto Jacob do Bandolim, que cedeu a gravação do relatório de Jacob sobre a morte de Ernesto Nazareth, e a Luiz Antonio de Almeida, biógrafo e herdeiro-honorário de Ernesto Nazareth, que pesquisa sua vida há quase 40 anos, e a quem somos imensamente gratos por ter compartilhado sua pesquisa, com autorização para citação.


COMENTÁRIOS

Thiago Leitor - 21.04.2014
Casa do Administrador da Colônia?
Olá! Primeiramente meus parabéns por essa matéria e pelo site que eu ainda não explorei, mas o farei quando terminar de digitar esse comentário. Já morei na Colônia Juliano Moreira quando pequeno e gostaria muito de saber se a casa do administrador da colônia que aparece em uma fotografia neste post, é aquela que fica bem próxima da Igreja Nossa Senhora dos Remédios e em frente ao Aqueduto? Obrigado desde já!
Edson Pinto Junior - 06.04.2014
Memória e cuidados
Admirador da obra de E.Nazareth, é sempre bom saber que sua história e memorias(pessoais e musicais) ainda estão presentes em nossas vidas. Pena tão pouca divulgação,
Guido de Castro - 19.06.2013
Ao Melhor Compositor Popular do Brasil!
As circunstâncias de sua morte pouco importa. Importa sim constatar o descaso, ainda hoje, com pacientes mentalmente perturbados. Quanto a sua obra, é magnífica, devendo ser mais divulgada. Aliás, assim como o fado português tornou-se patrimônio imaterial da humanidade (UNESCO), o nosso "Choro" - "Chorinho" mereceria o mesmo reconhecimento, tendo como um dos insignes representantes o Grande Compositor Nazareth.
Veronica Favato - 31.05.2013
Fiquei comovida!
Como um homem tão dinamico e de bem com a vida, que ainda doente fazia piadas e tocava piano pôde ter um fim tão trágico? Estudarei ao piano algumas obras de Nazareth em sua homenagem.
Newton Alfredo Ribeiro de Noronha - 20.05.2013
Tragédia brasileira
Fiquei comovido e profundamente triste ao conhecer os fatos perturbadores de uma tragédia com hora marcada e local marcado. Já tinha assistido a revelação, pelo Fantástico da Globo, dos horrores daquela instituição; mas a sua pesquisa sobre os pormenores da tragédia eu não as conhecia. Conclusão, será que é assim que nosso país trata nossos gênios musicais, nossos compositores, nossos pianistas, nossos músicos que deixam para a nossa gente um patrimônio de arte e beleza? Nazareth merece um dia consagrado a seu nome e à sua memória, pois entregou sua vida para criar nossa música brasileira e a fazê-la, senão a melhor, mas a mais lúcida e original de todas que amamos.
Edson - 23.04.2013
ERNESTO NAZARETH
MUITO BOM... GOSTEI DAS INFORMAÇÕES!
Eduardo - 26.03.2013
parabéns pela pagina
Ricardo Tacuchian - 18.03.2013
A morte e a vida de Ernesto Nazareth
Tocante a história de um grande artista no final de sua vida. Nunca saberemos se foi um acidente ou um suicídio. O fundamental é que ele morreu em vida quando foi internado na Colônia Juliano Moreira. Ele possuía momentos de lucidez e, mesmo quando entrava em transe, com comportamentos fora dos padrões do que chamamos de “normalidade”, ele possuía sua lógica própria. Portanto, segrega-lo de seu mundo e de seu piano foi uma violência que o matou antes de seu afogamento. Eu diria um final trágico para uma eternidade gloriosa. Parabéns a Luiz Antonio de Almeida, a Alexandre Dias, ao falecido Jacob do Bandolim e às dezenas de intérpretes que redimem os pecados da sociedade da época de Ernesto Nazareth, mantendo viva a sua memória e a sua obra. Nazareth, na verdade, morreu em vida, mas continua vivendo depois de sua morte.
Roberta Cunha Valente - 18.03.2013
Pobre Nazareth, violência sexual a essa altura da vida... :-( Acredito na tese de acidente durante a fuga, mas o fato de ele estar de pijama dá margem pra pensar no suicídio... enfim, escrevo para registrar aqui o quanto sou fã de vocês, Alexandre e Luiz Antonio. Parabéns. beijo
Neti Szpilman - 18.03.2013
Morte de Nazareth
A verdade é que muitas vezes a pessoa nesta condição tem momentos de lucidez, e aí que reside o problema. Um homem como Ernesto, será que tiraria a vida? Se estava sempre querendo fugir é porque buscava um outro caminho para sua existência. É uma pena que a família não tenha entendido os sinais. Eu vou continuar de maneira romântica a pensar que ele lembrou do aniversário do filho e buscou o tal caminho que levaria a sua casa. Caiu e se afogou acidentalmente. Mas quero parabenizar o Luiz Antonio por ir tão fundo nesta pesquisa.
Maria Angela Pires - 18.03.2013
Que tristeza !
Consta de biografias que Nazareth havia suicidado mas as condições em que ele se encontrava me leva a crer que foi crueldade da família mesmo. Lembrei-me de Schumann que se internou no sanatório porque ouvia vozes e os amigos o aconselharam a se internar para não prejudicar a família. Este texto levou-me a crer que Nazareth não estava louco. Apenas gostava de liberdade e idoso deveria dar trabalho por esta necessidade de ser livre. Compositor que com certeza não estaria arraigado às condições materiais e normais, sonhava, compunha e como um pássaro queria ser livre. Para mim foi suicídio sim e com razão. Falta de amor familiar. Lamentavelmente.


Trecho de obra da Disney, com a organista Ethel Smith.


 


Odeon, tango brasileiro publicado em 1909 pela Casa Mozart (E. Bevilacqua & Cia.) em edição custeada pelo autor, dedicado "à distinta empresa Zambelli & Cia.", proprietária do Cinema Odeon. Desde 1909 Nazareth tocava na sala de espera do referido cinema, o mais luxuoso da cidade. Muitas pessoas frequentavam o Odeon só para ouvir Nazareth tocar, deixando inclusive de assistir aos filmes.

Durante a vida de Nazareth, Odeon não foi uma peça de especial destaque, tendo sido gravada apenas em 1912,  pelo próprio compositor juntamente com Pedro de Alcântara ao flautim. Porém algumas décadas após a morte do compositor, Odeon tornou-se seu maior sucesso, especialmente depois que recebeu letra do poeta Vinícius de Moraes na década de 1960. Também possui uma letra anterior, de Hubaldo Maurício, raramente cantada. Até 2012, alcançou a impressionante marca de 325 gravações comerciais, feitas em diversos países.
A famosa melodia da primeira parte é construída de uma maneira engenhosa, tocada pela mão esquerda do pianista, enquanto a direita pontua com acordes. Nazareth utiliza este padrão em outras peças como Fon-Fon!RetumbanteTenebrosoÉ interessante também notar que tanto no manuscrito autógrafo como na gravação do próprio Nazareth, a parte B é repetida novamente no final da peça, gerando a forma extendida ABACABA (em vez do tradicional ABACA). Sabemos também que o compositor chegou a tocá-la diversas vezes em sua turnê por São Paulo em 1926/1927 e também no Rio de Janeiro.
Hoje Odeon figura no imaginário coletivo sendo um dos choros mais conhecidos do Brasil e do mundo, ao lado de Apanhei-te, cavaquinho e Brejeiro.
Embora Nazareth tenha composto esta música sem parceiros, é comum encontrarmos em contracapas de CDs a coautoria erroneamente creditada a Ubaldo Sciangula Mangione, presidente da atual Mangione, Filhos & Cia Ltda., segundo informação levantada pela jornalista Daniella Thompson.

Letra de Vinícius de Moraes
1ª Parte
Ai quem me dera
o meu chorinho
tanto tempo abandonado,
e a melancolia que eu sentia
quando ouvia
quem me fazer tanto chorar.
Também me lembra
tanto, tanto,
todo o encanto
de um passado,
que era lindo,
era triste, era bom
igualzinho a um chorinho
chamado Odeon.
Terçando flauta e cavaquinho
meu chorinho se desata.
Tira da canção do violão
esse bordão
que me dá vida
e que me mata.
É só carinho
o meu chorinho
quando pega e chega
assim devagarzinho
meia-luz, meia-voz, meio-tom
meu chorinho chamado Odeon.
2ª Parte
Ah, vem depressa
chorinho querido, vem
mostrar a graça
que o choro sentido tem
quanto tempo passou
quanta coisa mudou
já ninguém chora mais por ninguém.
Ah, quem diria que um dia,
chorinho meu, você viria
com a graça que o amor lhe deu
pra dizer “não faz mal,
tanto faz, tanto fez,
eu voltei pra chorar com vocês.”
3ª Parte
Chorinho antigo, chorinho amigo
eu até hoje ainda persigo essa ilusão
essa saudade que vai comigo
e até parece aquela prece
que sai só do coração.
Se eu pudesse recordar
e ser criança
se eu pudesse renovar
minha esperança
se eu pudesse me lembrar
como se dança
esse chorinho
que, hoje em dia,
ninguém sabe mais.
1ª Parte (para finalizar)
Chora bastante meu chorinho
teu chorinho de saudade.
Diz ao bandolim pra não tocar
tão lindo assim
porque parece até maldade.
Ai, meu chorinho
eu só queria
transformar em realidade
a poesia
ai que lindo, ai que triste, ai que bom
de um chorinho chamado Odeon.

Letra de Hubaldo Maurício
Ó que saudade das «Soireés» e «Matinês« lá do Odeon...
E lá o saguão, o pianista muito sério, o seu piano a dedilhar...
Os namorados, no intervalo, passeavam a se olhar!
Bilhetes mil, tinham asas, voavam era o jeito de amar.
E, mais tarde, na sala de projeção
O «mocinho» lutava contra o «vilão» era luta, luta dura
Soco, tapa, ponta-pé, bofetão...
A «mocinha» chorava e torcia, em vão...
A platéia gritava com emoção
Pega, bate, pisa, mata, mata, esse grande «vilão«!
E na saída, pra amenizar as emoções
No saguão põe-se a escutar
Ágil pianista tocando tangos,
Choros brejeiros, valsas lentas bem dolentes,
Encantados, embalados, num repente
O pianista vão cercando,
Se chegando, se chegando, quase, quase, quase a dançar, ah!...

Letra em francês gravada por Georges Moustaki em 2003:
Je me souviens d’un vieux ciné
Dans le quartier de l’Odéon
Là-bas
Pour deux fois rien on se payait
Quelques navets ou les chefs d’œuvre du muet
Blottis à deux dans un fauteuil
Les amoureux suivaient d’un oeil
Indifférent
Tout ce qui se passait dans
La salle ou sur l’écran
Je me souviens de ce ciné
Dans le quartier de l’Odéon
Parfois
On découvrait de vrais trésors
« Hôtel du Nord » et « Les enfants du paradis »
Les écoliers séchaient leurs cours
Pour y aller rêver d’amour
En regardant le corps transi
Les dentelles noires d’Arletty
Dans l’ombre le monde
Semblait si pur
Sans misère sans guerre
Sans rien de dur
Tarzan Zorro
Pancho Villa
Robin des Bois
Triomphaient des salauds
Nous étions des royalistes
Devant Garbo
Nous devenions marxistes
Façon Groucho
Nos héros étaient des héroïnes
Qui mataient les machos
Je me souviens d’un vieux ciné
Dans le quartier de l’Odéon
Là-bas
Pour deux fois rien on se payait
Quelques navets ou les chefs d’œuvre du muet
Tous les Jouvet tous les Chaplin
« Le jour se lève », « Helzapoppin »
Et « Casque d’or »
Nous en mettaient plein le cœur
Et c’était le bonheur
Seul dans son coin
Un musicien
Accompagnait les drames et les comédies
Si son piano
Jouait un peu faux
Aucun de nous n’en faisait une maladie
Jolies valses de grand-mère
Mazurkas d’avant la guerre
Il connaissait
Tous les succès
Qui avaient fait
Pleurer Margot
Cher musicien
Tout ça est loin
Mais ma mémoire me fredonne tes refrainsEet je revois
Le cinéma
Où chaque jour se retrouvaient tous les copains
Compagnon de ma jeunesse
Je te garde ma tendresse
Tout ça est loin
Mais jamais jamais jamais jamais jamais jamais jamais
Je ne t’oublierai
Je me souviens d’un vieux ciné
Dans le quartier de l’Odéon
Là-bas
Pour deux fois rien on se payait
Quelques navets ou les chefs d’œuvre du muet
Les amoureux y sont toujours
Les écoliers sèchent leurs cours
Pour y aller rêver d’amour
La vie n’est qu’un « Eternel retour »